• Lágrima de Preta

     

    Encontrei uma preta
    que estava a chorar,
    pedi-lhe uma lágrima
    para analisar.

     

    Recolhi a lágrima
    com todo o cuidado
    num tubo de ensaio
    bem esterlizado.

     

    Olhei-a de um lado,
    do outro e de frente:
    tinha um ar de gota
    muito transparente.

     

    Madei vir os ácidos,
    as bases e os sais,
    as drogas usadas
    em casos que tais.

     

    Ensaiei a frio,
    experimentei ao lume,
    de todas as vezes
    deu-me o que é costume:

     

    nem sinais de negro
    nem vestígios de ógio.
    Água (quase tudo)
    e cloreto de sódio.

     

    António Gedeão

    Lágrima de Preta


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  •  

     

     História do Brasil

     

    Então o Brasil-menino

    rabiscou no seu caderno

    de figuras esta história

    do seu destino :

                           (a lápis vermelho)

    primeiro a manhã indígena

    saiu da montanha espessa

    trazendo um cocar vermelho

    sobre a cabeça ;

                            (a giz branco)

    depois o dia marítimo

    das velhas naus portuguesas

    saltou de dentro das ondas

    qual pássaro branco

    ruflando a asa enorme

    das velas retesas ;

                             (a carvão)

    E a noite africana por último,

    que chegou amarrada

    no porão do navio

    com os seus orixás,

    com os seus amuletos,

    e que veio pra terra

    trazida nos ombros

    dos pretos...

     

    Cassiano Ricardo

    Poesia para a Infância

    História do Brasil, Cassiano Ricardo. Brasil, século XX


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  • Todas as cartas de amor...

    Fernando Pessoa
    (Poesias de Álvaro de Campos)


    Todas as cartas de amor são
    Ridículas.
    Não seriam cartas de amor se não fossem
    Ridículas.

    Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
    Como as outras,
    Ridículas.

    As cartas de amor, se há amor,
    Têm de ser
    Ridículas.

    Mas, afinal,
    Só as criaturas que nunca escreveram
    Cartas de amor
    É que são
    Ridículas.

    Quem me dera no tempo em que escrevia
    Sem dar por isso
    Cartas de amor
    Ridículas.

    A verdade é que hoje
    As minhas memórias
    Dessas cartas de amor
    É que são
    Ridículas.

    (Todas as palavras esdrúxulas,
    Como os sentimentos esdrúxulos,
    São naturalmente
    Ridículas.)


    Álvaro de Campos, 21/10/1935

    Todas as cartas de amor...


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  • Amor é um Fogo que Arde sem se Ver

    Amor é um fogo que arde sem se ver;
    É ferida que dói, e não se sente;
    É um contentamento descontente;
    É dor que desatina sem doer.

    É um não querer mais que bem querer;
    É um andar solitário entre a gente;
    É nunca contentar-se e contente;
    É um cuidar que ganha em se perder;

    É querer estar preso por vontade;
    É servir a quem vence, o vencedor;
    É ter com quem nos mata, lealdade.

    Mas como causar pode seu favor
    Nos corações humanos amizade,
    Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

    Luís Vaz de Camões, in "Sonetos"

    Amor é um Fogo que Arde sem se Ver


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